Com apenas um ano de casada, a
professora Elisane Gusmão foi diagnosticada com câncer genital. Era abril de
2009. Um sangramento durante o ato sexual foi o primeiro sintoma que a fez
procurar um médico. O profissional indicou sessões de radioterapia e braquiterapia.
Contudo, após o término do tratamento, uma outra surpresa nada agradável: os
tecidos da sua cavidade vaginal haviam sido fechados, o que a impediria de
menstruar e ter relações. Este foi o início de uma saga árdua em busca da cura
que a trouxe quase dez anos depois da descoberta da enfermidade ao Ceará,
pioneiro em reconstrução do canal vaginal com pele de tilápia.
Elisane, 41, é natural de Medina,
no Vale do Jequitinhonha (MG). Muito antes de desembarcar em Fortaleza,
percorreu inicialmente o Sudeste do País. Como numa peregrinação, de hospital
em hospital, a educadora seguia para cada consulta movida pela "fé e a esperança"
de reverter o quadro de saúde.
Hospitais particulares de Belo Horizonte e clínicas escolas em São Paulo a
receberam. Em todas elas, para sua infelicidade, tentativas frustradas.
"O médico da minha cidade
disse que não era comum de se fazer. Procurei médicos em BH, um deles me propôs
uma cirurgia, mas corria o risco de perfurar a minha bexiga e eu ter que usar
fralda para o resto da vida. Procurei um médico muito renomado da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), mas ele não estava fazendo mais a cirurgia de
reconstrução vaginal. Ele me deu uma prótese de acrílico, que iria moldar o meu
canal vaginal com o uso constante, mas isso não aconteceu", conta,
emocionada.
E agora, para onde ir? Era,
talvez, o questionamento mais recorrente em cada despertar. "Em setembro
de 2018, eu acordei chorosa, porque era um fardo que eu estava carregando com o
meu marido sem saber o que fazer". A incerteza que a angustiava nos
últimos anos, porém mudaria em poucos dias com um sinal divino. "Na semana
seguinte, pela manhã, Deus me mandou uma frase para eu jogar na internet:
'médico que refaz o canal da vagina'. Quando fiz a pesquisa, imaginei que seria
fora do Brasil, mas aí encontrei uma reportagem falando que o Ceará é pioneiro
nessa cirurgia", lembra Elisane, sorrindo, como se repetisse a mesma
reação que teve naquele mês, ao saber da possibilidade de cura
Tilápia
A solução para o caso de Elisane
veio da água doce. A pele de tilápia, que já era utilizada como prótese
biológica para pacientes vítimas de queimaduras, ganhou outra importante
finalidade. Desta vez, na área de ginecologia. Pesquisadores da Universidade Federal
do Ceará (UFC) recorreram à membrana do peixe para ajudar mulheres nascidas com
a síndrome de Rokitansky ou agenesia vaginal, que atinge uma em cada cinco mil
pessoas do sexo feminino. Nelas, a parte externa do órgão é normal, mas o canal
interno é curto ou não existe. 10 mulheres já passaram por cirurgia desta
natureza na Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac).
No entanto, a educadora mineira
não está incluída nesse perfil, já que nasceu com as funções normais da vagina
e desenvolveu o problema somente após a descoberta de um câncer. Por outro
lado, foi a partir de Elisane Gusmão que a pesquisa da UFC evoluiu para um
outro patamar, mais precisamente no dia 21 de novembro de 2018. De forma
inédita, uma equipe de saúde realizou a cirurgia de reconstrução de vagina com
pele de tilápia em mulher submetida a radioterapia pélvica.
"É a primeira vez na história
que se usa uma prótese de animal aquático em substituição à pele natural; nesse
caso específico, nas mulheres pós radioterapia. Esse tratamento destrói os
tecidos, gerando o fechamento completo do canal da vagina, então é uma
reconstrução muito difícil de ser feita. A pele de tilápia funciona como um
novo tecido, estimulando o crescimento de células novas e reconstruindo o canal
vaginal", explica o professor de Medicina e cirurgião Leonardo Bezerra.
Cura
Se, para a ciência, o feito é
avaliado como um avanço, já que a partir dos estudos, a pele de tilápia tem
mostrado resultados concretos no campo cirúrgico, para Elisane tem um
"valor transformador". Depois de obedecer ao pré-operatório com exame
de sangue completo, ultrassonografia, ressonância pélvica e mamografia, a
professora anotou no calendário e registrou na memória aquela data não só como
uma nova aposta, mas, sobretudo, como o fim de um ciclo de tristeza, aflição e
incertezas. Era tempo de dar as boas-vindas ao tão sonhado momento.
Segundo o médico Leonardo Bezerra,
a cirurgia "foi um sucesso". Diferentemente do método convencional,
que retira um pedaço do intestino ou enxertos da virilha da própria paciente
para reconstrução do canal vaginal, o procedimento com a pele de tilápia é
menos invasivo. "Nesse caso em particular, nós precisamos individualizar
os órgãos, porque estava tudo literalmente muito grudado devido à radioterapia.
Precisamos primeiro desse tempo abdominal através da laparoscopia, onde
separamos as estruturas bexiga e reto e, no segundo momento, fizemos o canal
vaginal".
A professora ficou internada dez
dias na Meac. Para fixar a pele de tilápia no novo canal vaginal, um molde de
acrílico foi colocado no interior do órgão, sendo substituído posteriormente
por um de látex. E Elisane, como tem reagido a intervenção cirúrgica? Quase
dois meses depois do procedimento, o retorno do médico durante a consulta de
rotina sentencia aquilo que ela mais esperou ouvir nos últimos anos.
"Está tendo uma vida normal,
ainda sem atividade sexual, porque a gente pensa em liberar entre três e seis
meses, mas, no exame físico, ela tem cavidade vaginal, com comprimento e
largura normais. Ou seja, se ela fosse examinada por um profissional que não
soubesse do que aconteceu, nem sequer ele iria perceber alguma alteração",
pontua Leonardo Bezerra.
Finalmente, para a alegria copiosa
de Elisane Gusmão, o desejo mais cultivado tornou-se real, mesmo achando que
ainda não passa de um sonho.