O T de transgênero guarda não só a força
de ser das pessoas que assim se reconhecem, ele suprime a tristeza do abandono
provocado pela sociedade, a tensão de não conseguir uma colocação no mercado de
trabalho e o terror de ser assassinado em qualquer rua em meio à violência e ao
preconceito.
Apenas no mês de agosto, foram contabilizados quatro homicídios
de mulheres transexuais ou travestis, quase um terço de todos os registros
levantados pelo Sistema Verdes Mares (SVM). Até a publicação desta reportagem,
pelo menos 14 pessoas trans morreram vítimas de crimes violentos letais. Todos
os casos confirmados com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social
(SSPDS), mas as motivações para tais crimes ainda estão sob apuração.
Os registros deste ano já são superiores ao que foi observado
pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) em todo o ano
passado no Ceará. De janeiro a dezembro de 2019, a entidade contabilizou 11
homicídios cujas vítimas eram da população T. O número não só preocupa, mas é
um alarme que precisa soar forte na gestão da Segurança Pública do Estado.
Casos
O caso mais recente aconteceu na cidade de Crateús. Lá, Daniele
Rodrigues, de 21 anos, foi encontrada morta em um matagal que fica próximo à
sua casa. No dia 10, Letícia Costa, de 29 anos, foi morta nos cruzamentos das
ruas Jaime Benévolo e Clarindo de Queiroz, no Centro da Capital. Ela passou
quatro meses trabalhando fora do Ceará e voltou às ruas da cidade como profissional
do sexo.
Dois dias antes, uma adolescente, identificada pelo Centro de
Referência LGBT Janaína Dutra como Ludmila Silva, foi vítima na Rua Dallas, no
bairro Granja Lisboa. Ela teria entrado em um matagal com dois homens; minutos
depois, de lá se ouviu disparos de armas de fogo. Os suspeitos fugiram. Ela
ficou lá. Estendida, ainda com vida até a Polícia chegar ao local, mas não
resistiu. A população nem sequer acionou uma ambulância para socorrê-la.
No dia 3 de agosto, outra travesti foi morta, desta vez no bairro Bonsucesso. A
identidade dela ainda não foi revelada pela SSPDS, mas o crime aconteceu a 700
metros de uma unidade do Batalhão de Polícia de Meio Ambiente (BPMA). Ela foi
encontrada seminua, em uma rua sem qualquer saneamento básico, envolta por uma
poça de lama e um muro de um terreno baldio.
Problemas
Se as palavras chocam, é de se imaginar o terror e a revolta que
esses casos provocam em integrantes da comunidade trans que, além de conviverem
com a tensão do cotidiano, veem amigos e amigas sendo levados pela violência,
muitas vezes, motivada pelo preconceito. "São números que assustam,
principalmente, por ter sido em pouco tempo. Em uma semana, três casos... Foi
um bombardeio de informação. A gente se sente com medo pela vida de todas nós",
relata a ativista da Associação de Travestis do Ceará (Atrac) Yara Canta.
"A gente enxerga tudo isso com muita preocupação, apesar de
não ser nenhuma novidade essa de estar nesse local de desumanização que a gente
enfrenta. São várias questões que culminam até chegar nesses
assassinatos", avalia. Na visão de Yara, o poder público não dá
devolutivas à população trans porque "além de existir essa transfobia
estrutural, não há políticas públicas e nem vontade e preocupação em mudar, nem
sequer investigar os casos direito".
A diretora do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis da
Polícia Civil do Ceará, delegada Rena Gomes, afirma que os casos de vítimas
LGBTQI+ estão sendo investigados pelo Departamento de Homicídios e Proteção à
Pessoa (DHPP). "Inclusive já foram realizadas várias diligências e estão
sendo feitas todas as investigações realmente com essa lente diferenciada com
relação a esse público", completa.
Conforme a delegada, há ações dentro da SSPDS e da Polícia Civil
voltadas para otimização do atendimento do público LGBTQI+, além de uma
comissão formada com vários profissionais da área. "Essa comissão é
responsável por otimização, melhorias no sistema de informações policiais para
que nós possamos ter melhores dados e que a gente possa, com eles, impactar na
elaboração de políticas públicas", explica.
Subnotificação
De acordo com a supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e
Ações Coletivas da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE), Mariana Lobo,
os números são subnotificados e há problemas no atendimento a essa população.
"Ainda existe uma dificuldade muito grande da quantificação dos casos de
transfobia e de violência, seja por causa do reconhecimento da identidade de
gênero em si, seja pelo não preparo da rede de segurança pública,
principalmente nas delegacias de polícia para a notificação correta desses delitos",
acredita a defensora.
Segundo Mariana Lobo, mesmo após um ano desde que o Supremo
Tribunal Federal equiparou o crime de LGBTQIfobia ao de racismo, o Sistema de
Informação Policial (SIP3W), utilizado pela Polícia Civil, ainda não tem
tipificado o crime de transfobia. Na visão da defensora, "ainda não existe
uma política muito consolidada nos órgãos de segurança na perspectiva de fazer
um recorte desses casos, que tem como questão de fundo o ódio e a
discriminação", pois, para ela, deveria haver "recorte e prioridade
na apuração".
Mariana ainda ressalta, assim como Yara Canta, que o homicídio é
o ápice de um sistema que já promoveu uma série de perdas de direitos e outras
violências. Foi assim com Babalu, morta em 22 de junho deste ano. Aos 44 anos,
ela havia acabado de sair de um hospital, no Centro de Pacajus, quando foi
atingida por disparos de arma de fogo. Babalu havia ido à unidade para retirar
gases e pontos provocados por uma tentativa de homicídio ocorrida um mês antes,
no mesmo bairro do município.
No campo
Para a titular da Coordenadoria de Políticas Públicas para
Diversidade Sexual de Fortaleza, Dediane Souza, "existe um processo de
intolerância contra esses corpos trans, que são corpos que não têm como se
camuflar e são muito visíveis dentro das relações. Então há um atravessamento
da naturalização da violência".
Ela pondera que embora as mulheres transexuais e travestis já se
encontrem em um contexto de vulnerabilidade, os lugares onde mais são
promovidas violências contra elas são nas próprias comunidades onde vivem,
moram e se socializam. Por isso, o Centro de Referência LGBT Janaína Dutra
oferta serviços quando se trata de violação de direitos e violência dessa
população.
Conforme Dediane, o Centro atua junto aos órgãos de segurança
catalogando e acompanhando os casos. "É toda uma rede que a gente precisa
mobilizar para que a gente mostre para a sociedade o nosso papel. O intuito é
de que esses casos não possam ser esquecidos, porque eles precisam ir a
julgamento, essas pessoas precisam ser punidas de acordo com a lei para que não
haja mais esse tipo de crime", evidencia.
Pelo menos 14 pessoas transexuais ou travestis foram
assassinadas neste ano de 2020 no Ceará, cerca de 30% dos casos ocorreram em um
intervalo de um mês, entre os dias 11 de julho e 10 de agosto. A maioria dos
casos aconteceu em Fortaleza, mas há registros em outras cidades do Estado
Registros
06/01: A travesti Paola Prado foi morta com
disparos de arma de fogo na cabeça, na Rua Pedro Borges, no Centro de
Fortaleza. Ela, supostamente, era prostituta, segundo pessoas em situação de
rua que estavam no local.
14/02: Monike Matias Chagas, de 25 anos, foi
encontrada morta na cachoeira da cidade de Missão Velha, no Cariri cearense. A
travesti estava acorrentada e parcialmente submersa, presa por uma corda ao
medidor de nível da cachoeira, segundo a Polícia.
23/02: Dávila Duarte foi morta durante a
madrugada na rua Quintino Bocaiúva, no Centro de Fortaleza. Segundo a SSPDS, a
vítima estava sem identificação, mas o Centro de Referência Janaína Dutra
identificou seu nome social posteriormente.
29/03: Luana Paty, de 39 anos, morreu no
Instituto Dr. José Frota (IJF) após ser atingida dois dias antes por disparos
de arma de fogo na Rua Carolina Sucupira, no bairro Aldeota.
16/05: A travesti Bárbara, 33 anos, foi morta
dentro de casa, na Rua José Abílio, no bairro Granja Portugal, em Fortaleza. De
acordo com a Polícia Civil, o responsável pelo crime foi Mateus Ualefi Lima de
Sousa, 20. Ele se apresentou espontaneamente ao 32° Distrito Policial (Granja
Lisboa), um dia após o assassinato, foi ouvido e indiciado.
06/06: Luanna Kelly, de 22 anos, foi morta
durante a madrugada no Centro do município de Camocim. Conforme a SSPDS, ela
foi assassinada por golpes de um objeto perfurocortante após uma discussão com
três homens, os quais foram capturados horas após o crime. Samuel Monteiro de
Oliveira (25), Rodolfo da Silva Sabino (25) e Antônio Abreu de Lima (30) são os
principais suspeitos.
22/06: Uma travesti identificada como Babalu,
de 44 anos, foi assassinada por disparos de arma de fogo no Centro da cidade de
Pacajus. Menos de um mês antes, ela já tinha sido atingida por uma lesão a
bala, na mesma região.
11/07: Carol Eleotério da Silva, de 36 anos,
foi morta durante a noite na Rua Sabiá, bairro Alto da Brasília, na cidade de
Sobral. Segundo informações apuradas no local, ela foi vítima de um disparo de
arma de fogo na nuca.
12/07: Soraya de Oliveira Santiago, de 35 anos,
foi encontrada morta à margem da Lagoa da Maraponga. O corpo da cabeleireira estava
junto ao de um homem identificado como Francisco Ediberto dos Santos
Brasileiro. Segundo a SSPDS, as lesões que levaram ambos à morte foram
provocadas por arma de fogo.
19/07: Rhyanna Mabelly Spanick, de 20 anos,
morreu no dia 19 de julho dentro da própria casa na cidade de Iguatu após
complicações de uma lesão corporal sofrida em fevereiro deste ano. Ela foi
lesionada pelo próprio primo, identificado como Victor Frutuoso Casé, no bairro
Primavera.
03/08: Uma travesti cuja identificação ainda
não foi realizada foi morta por golpes de faca na Rua Pedro Cardônio Uchôa, no
bairro Bonsucesso, em Fortaleza. O crime ocorreu a cerca de 700 metros de uma
unidade de Polícia.
08/08: Uma travesti identificada como Ludmila
Silva foi assassinada a tiros na Rua Dallas, no bairro Granja Lisboa, em
Fortaleza. Conforme testemunhas, ela entrou em um matagal com dois homens e,
minutos depois, foram ouvidos disparos de armas de fogo. Os suspeitos
fugiram.
10/08: Letícia Costa, de 29 anos, foi morta
durante a noite, no cruzamento das ruas Jaime Benévolo e Clarindo de Queiroz,
no Centro de Fortaleza. Ela trabalhava como garota de programa na região e
havia retornado de outro Estado após alguns meses trabalhando fora do Ceará.
19/08: Daniele Rodrigues, de 21
anos, foi encontrada morta em um matagal no bairro Venâncios, próximo ao
Cacimbão da Vila José Rosa, no município de Crateús. Ela foi atingida por
disparos de arma de fogo.
